Não conseguimos tirar da cabeça essas duas correntes quando lemos sobre a crise atual da Argentina. Nem de longe queremos sugerir que a discussão que se trava na mídia tenha algo a ver com os debates historiográficos acima mencionados, mas parece estar havendo um conflito entre uma perspectiva de longo e uma de curto prazo para explicar os problemas atuais do vizinho e é esse tópico que queremos analisar aqui.
Numa perspectiva de curto prazo, os problemas da Argentina derivam basicamente do modelo de câmbio fixo implantado em 1991. Um grave erro induzido pelo FMI ou pelo neoliberalismo; uma prova da incapacidade da elite argentina em se livrar da herança populista (que teria inviabilizado um modelo, em si, positivo), não importa. Todas essas explicações giram em torno de um problema imediato, de gerenciamento do modelo e parecem não conseguir visualizar mais nada a partir daí; o problema argentino é de caráter financeiro. Resolva-se isso e pronto, a Argentina pode voltar a ser a Suíça da América Latina.
Numa segunda perspectiva, dilui-se a ultima década de história argentina dentro de uma temporalidade maior. As discussões passam a girar em torno do momento em que começou a decadência da Argentina (1930? 1945? 1950?) e os motivos estruturais que levaram a isto. Os problemas da última década são mero detalhe e se torna possível, assim, esquecer o que ocorreu recentemente em favor de grandes reflexões gerais sobre o "paradoxo argentino".
Ambas as maneiras de ver o problema têm implicações políticas claras. Para os que bancaram o modelo cambial e econômico argentino na última década, nada mais cômodo do que jogar a culpa dos problemas atuais na história argentina, se eximir de quaisquer responsabilidades e enviar os lucros auferidos para o exterior. Do mesmo modo, é politicamente muito mais fácil dizer ao povo argentino que todos os problemas do país se resumem a algumas tolices cometidas na última década. Refaçamos isso e pronto, o paraíso estará de volta e poderemos voltar a rir dos "macaquitos" brasileiros.
Da mesma forma como, em teoria da História, não consigo aceitar nem uma perspectiva que só trabalhe com a curta duração e nem outra que só aborde a longa, me parece que o problema argentino tem que ser trabalhado com os dois pontos em mente, sob pena de perdermos todo o sentido do que está acontecendo. Vejamos.
A decadência argentina não pode realmente deixar de impressionar quem a estuda. Do país mais rico e desenvolvido da América Latina, de um dos pólos de desenvolvimento do mundo até 1930, pelo menos, a Argentina caminha a passos largos para se tornar apenas mais um dos pobres países da América Latina. Um argentino morto por volta de 1945 que ressuscitasse provavelmente não entenderia o que vê: do país rico e orgulhoso que tinha a coragem de bater de frente com os Estados Unidos e disputava a liderança continental com o Brasil, o que resta? Uma nação em crise, com índices sociais ainda melhores do que os nossos, mas declinantes, que tentou desesperadamente se jogar aos pés do tio Sam e cuja força econômica e política regrediu enquanto a brasileira cresceu. Um outro mundo surgiu no sul da América em meros cinqüenta anos e qualquer um que tente jogar toda a culpa disso em Menen ou no neoliberalismo dos anos 90 estaria dando excessivo crédito a eles. Um país tão rico e desenvolvido não pode ser destruído tão facilmente. Os motivos vêm de um passado mais longínquo.
O debate para explicar a decadência argentina é volumoso demais para ser resumido aqui (ver Lewis, Colin. "Explaining Economic Decline: a Review of Recent Debates in the Economic and Social History Literature on the Argentine. European Review of Latin American and Caribbean Studies, 64, 1998, pp. 49-68) e só posso, evidentemente, dar a minha opinião a respeito.
No meu entendimento, um dos motivos centrais do colapso da prosperidade argentina foi a sua incapacidade em se adaptar a um mundo em mudança. A Argentina de sucesso do século passado se baseou num sistema exportador centrado em trigo e carne. Esse era o combustível do sistema, a fonte de lucros imensos que circulavam dentro do país e permitiam a existência de uma sociedade de classe média. A ênfase na educação da sociedade portenha desde o século XIX, a absorção dos imigrantes e outros pontos foram importantes para a Argentina ser um país mais igualitário, com uma ampla classe média, mas a base do sistema era claramente a exportação agrícola.
Até aí, nenhuma grande novidade. No mesmo período, o Chile também vivia de exportar nitratos e o Brasil era o cafezal do mundo. No entanto, por mais que se critique o governo Vargas, o período JK e mesmo o regime militar, um ponto positivo deve ser ressaltado: houve suficiente bom senso e coragem política para perceber que era necessário industrializar o país e escapar da dependência da agricultura. Ninguém diz que esse processo de industrialização foi isento de falhas e problemas, mas ao menos colocou o Brasil dentro do mundo industrial. Nosso desafio agora é caminhar para o mundo "hi-tech" e não, como na Argentina, sair da dependência histórica da agroindústria.
O populismo dos governos ligados a Perón, com a criação de um Estado provedor, corrupção e um estatismo atroz com certeza ajudou a levar a Argentina para o buraco. No entanto, nos parece que a culpa do peronismo é superavaliada pelos analistas de hoje, que gostam de jogar nele a culpa pelo fracasso do sistema liberal, o qual seria naturalmente bom. No entanto, se a estrutura econômica (para usar um termo bem marxista) tivesse continuado a gerar lucros imensos como antes, os desperdícios populistas poderiam ter sido, talvez, absorvidos. Como isso não ocorreu na conjuntura econômica mundial pós-Segunda Guerra Mundial (de superoferta de produtos agrícolas) e o sistema político não conseguiu reunir força de vontade (ou competência) para mudar estruturas econômicas que pareciam funcionar tão bem, a tendência era a decadência. Os militares e seu ultraliberalismo conseguiram causar ainda mais danos do que a política de substituição de importações ultra-radical dos anos 50 e 60 e o resultado final foi o caos econômico da Argentina em fins dos anos 80, que o modelo do câmbio fixo tentou resolver. De qualquer forma, há um problema de longo prazo de competitividade, de um sistema político que não consegue liderar o país para mudanças que explica os problemas argentinos de hoje.
Esse aspecto da questão, contudo, nem está sendo mencionado no debate atual. E ele tende a afetar o futuro da Argentina muito mais do que os modelos de câmbio. A menos que os preços das commodities agrícolas cresçam enormemente nos próximos anos, a Argentina vai continuar sem o motor econômico que tinha antes. Sua base industrial continua precária e isso impede a Argentina de exportar produtos de maior valor agregado. Para piorar o quadro, há, no país, um subinvestimento generalizado em tecnologia, uma falta de mentalidade gerencial moderna e uma estrutura governamental sucateada. A Argentina não consegue usar sua mão de obra ainda bem educada para criar uma sociedade "hi tech". A falta de competitividade argentina (e sua conseqüente decadência sócio-econômico), assim, não é só um problema imediato , mas também de adaptação estrutural.
Isso significa então que os que mandaram no país nos últimos dez anos nada tem a declarar, vítimas que são das grandes tendências da História? Longe disso: estes líderes adotaram políticas que resolveram, inicialmente, os problemas imediatos da sociedade argentina (a inflação, por exemplo), mas não quiseram colocar o dedo na ferida e pensar nos problemas de longo prazo, num projeto para a Argentina. Lucros estavam sendo gerados para os ricos, a população estava satisfeita e o poder estava garantido. E o que é melhor, com aplauso geral do mundo. Para que mudar?
Fiz, a propósito, um exame no meu arquivo de recortes sobre a Argentina nos últimos dez anos. Na década de 90, era possível encontrar economistas que alertavam para os riscos do modelo cambial, das dificuldades em manter aquele modelo e como seria conveniente pensar em alternativas. Na esmagadora maioria dos casos, porém, só encontramos elogios: do governo dos EUA, do FMI, dos empresários, dos tecnocratas brasileiros que queriam dolarizar nossa economia, etc, e qualquer sugestão de mudança parecia loucura ou coisa de "dinossauros" que ousavam acreditar que os mercados não são perfeitos. Quando o modelo começou a fazer água, novamente ninguém teve coragem ou capacidade de articulação para fazer o que era necessário no momento certo e se preferiu procrastinar o quanto fosse possível. Os resultados estão ai.
Vemos, portanto, que é injusto culpar os neoliberais por todos os problemas da Argentina, que vêm de longa data. Por outro lado, negar as responsabilidades dos que estiveram no poder nos últimos dez anos (e nos que os apoiaram) é pura hipocrisia. Eles lucraram, em termos de dinheiro e poder, com o modelo enquanto puderam, sem se preocupar com o futuro nem em longo nem em médio prazo, não resolveram efetivamente os problemas da Argentina e geraram outros. Assim, ter consciência histórica não é dar carta branca aos que fazem o presente.
Na verdade, o Brasil chegou muito perto de ser uma Argentina. O modelo do Plano Real promoveu o controle da inflação, melhorou alguns serviços com a entrada da concorrência estrangeira, ampliou a competitividade econômica interna e garantiu crescimento econômico enquanto havia capitais externos abundantes. Por outro lado, o modelo tinha defeitos: brutal déficit de conta corrente, a falta de vontade de pensar em políticas sociais ou de estímulo ao desenvolvimento (coisa, evidentemente, de "dinossauros", novamente), os juros galopantes e a dívida pública crescente. Quem, porém, ia propor uma mudança em time que estava ganhando? A situação se arrastou até o colapso de 1999. Por sorte, nossa flexibilidade institucional para mudar o câmbio era maior, os ultraliberais que queriam a dolarização foram derrotados e uma administração democrata nos EUA promoveu um socorro imediato. Abandonamos o modelo e conseguimos sobreviver. A herança para o próximo governo, boa e má, está ai, mas, ao menos, não repetimos o caos argentino.
Nesse ponto, voltamos ao problema da curta e da longa duração. Fazer o Brasil ir para frente é abordar alguns problemas de nossa história que só podem ser entendidos numa perspectiva maior. Uma elite pouco preocupada com o país e centrada no seu lucro e poder; a exclusão social sem fim, o descaso com a educação e a (des) promoção da modernidade são tradições da nossa sociedade que só podem ser enfrentadas em longo prazo. Ninguém de bom senso esperaria que o governo FHC pudesse resolver tudo em oito anos ou que seu sucessor o faça em outros oito. Mas, nos anos de reinado tucano, essas questões não foram realmente abordadas, ou, pelo menos, não no nível que seria necessário. O modelo permitiu a estabilidade, mas não o crescimento ou a superação de velhos problemas.
Assim, temos que aprender com a Argentina e pensar nos futuros do Brasil. Dizer que os problemas do país vêm de FHC e do neoliberalismo e que a solução é a volta ao mundo dos anos 50 ou 70 seria ridículo e temos que saber aproveitar a herança positiva que esse governo deixou (equilíbrio fiscal, fim da inflação, expansão quantitativa da educação, abertura e melhora da eficiência em alguns setores da economia, etc). Por outro lado, a política tem que oferecer a possibilidade da mudança e, se queremos superar a herança negativa de curto prazo do governo FHC (dependência externa, a conta de juros, a dívida interna alta, o descaso com a concentração de renda, etc.) e avançar na resolução dos problemas de longa duração do Brasil, temos que ter um projeto que contemple ambos, o Brasil no qual vivemos, hoje, e seus problemas e também o Brasil que queremos para o amanhã.
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